30 de abril de 2012

Amputação

           Com o tranco, a cabeça girou totalmente para trás como se não tivesse eixo,
           o corpo ameaçou despencar. Um dos braços caiu no chão com um estalo oco.
           A noite começava a abraçar a cidade, mas a claridade nonsense do branco
           rosado iluminando a cena bizarra chamou a atenção de Otavio, que acabara
          de estacionar naquela rua de muito trânsito mas poucos pedestres àquela hora.
           O embate daqueles dois corpos durou um tempão e a cena, bastante sensual ,
           fez Otavio esquecer-se da pressa e do compromisso e permanecer sentado ao
           volante para apreciar a cena. Ele, tão acostumado a consertar ossos e esque-
           letos, ortopedista que era, encantou-se com essa outra forma de lidar com o
           corpo humano.
           A balconista de pernas tão longas quanto o manequim sofria para mudar o
           figurino e deixar a vitrine pronta  para o dia seguinte. Era excitante ver a garota
           magra roçando as ancas com a boneca angulosa na tentativa de recolocar o
           braço caído, abrir um zíper, puxar as mangas, tirar-lhe o vestido. Agora total-
           mente nu, ela começou a cobri-lo outra vez. Ajeitava a nova roupa, cobria um
           seio, subia a barra expondo as coxas, alisava a cintura. Parecia quase um balé,
           mais um carinho meio desajeitado. Demorou, mas logo o manequim estava
           totalmente renovado, membros e cabeça no lugar, quadris tortos e empinados,
           numa daquelas estranhas posições de vitrine.  
           Esquecido do tempo, meio excitado e divagante, ele viu a garota satisfeita
           com o resultado, abaixar-se junto à parede para apagar o refletor que jogava
           a luz rosa de baixo para cima e carregar as peças que substituíra para dentro.
           A rua ficou ainda mais escura quando a vitrine se apagou, mas uma luz tênue,
           que vinha lá do fundo permitia que um observador mais atento acompanhasse
           vagamente o que acontecia no interior da boutique.
           Concentrando o foco, segundos depois Otavio viu a vendedora sair do provador
           vestindo a roupa que tirara do manequim e, com jeito feliz, dar pulinhos de alegria
           admirando-se de longe no espelho. Mesmo naquela semidistância ele podia ver
           que aquele vestido de um azul royal intenso caía muito melhor na garota pernuda
           do que na boneca sem vida.  Ela desfilava para alguém. Logo o médico constatou
           que era para a gerente da loja, mulher de tipo encorpado e seios fartos que
            parecia elogiar o conjunto da obra, alisando o modelo e a modelo, e esta
           demonstrava gostar dos afagos. Segundos depois ela colava seu corpanzil ao
           da jovem num abraço apertado, iniciando um erótico jogo de ancas, um
           abaixa-levanta meio desastrado que as fez caminhar enlaçadas e trôpegas até
           a lateral da loja, numa área menos iluminada.   
           Agoniado, Otavio saiu do carro, e sem se preocupar se estava sendo visto,
           aproximou-se da vitrine e, riscando o olhar pela penumbra, localizou a garota
           apoiada no balcão e a gerente com o rosto enfiado entre as suas pernas. A
           jovem revirava a cabeça, e de vez em quando olhava para ver o que a outra
           estava fazendo, e parecia delirar. Quando parecia que havia terminado, elas
           voltaram a se abraçar, e a garota começou a retribuir toda a sequencia .
            Aquilo pareceu a ele durar uma eternidade. De repente Otavio sentiu o celular
            vibrar em seu bolso.
            - Oi, mano, já pegou a Fernanda? Tá todo mundo aqui esperando vocês.
            - Não peguei não – respondeu o médico enquanto tentava reordenar os
               pensamentos.
            - O que foi, está preso no trânsito?
            - Não, tá tudo livre, em poucos minutos eu chego. Mas a Fernanda teve um
               contratempo e não poderá ir. 
            - Puts, melou a surpresa então. Você vai ter que adiar o pedido...
            - É, melou.